Fies: batalhas judiciais no caminho do diploma universitário

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A educação superior no Brasil, nos últimos anos, ficou mais acessível. Segundo dados  do Censo da Educação Superior, promovido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), em 1999 havia cerca de 2,3 milhões de pessoas matriculadas em cursos de ensino superior, e em 2017 esse número já havia superado a casa de 8 milhões; a média de crescimento anual tem sido de 4,6%. Boa parte desse aumento pode ser creditado ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa do governo federal.

Atualmente disciplinado pela Lei 13.530/17, o Fies sofreu diversas mudanças na sua regulamentação ao longo do tempo, mas manteve a essência: propiciar à população de baixa renda condições de acesso ao sistema de ensino superior particular, por meio de financiamento a juros baixos – que, em alguns casos, podem ficar em 0%.

Com um número tão grande de pessoas atendidas, a quantidade de controvérsias jurídicas – e, por consequência, de ações judiciais – relacionadas ao Fies acaba sendo também expressiva. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou entendimento sobre vários aspectos do programa.

Impenhorabilidade

Os recursos recebidos pelas instituições de ensino superior por meio do Fies são caracterizados como públicos e não podem ser submetidos a penhora, conforme o artigo 833, IX, do Código de Processo Civil (CPC/15). Isso significa que, caso seja necessária a penhora de ativos de instituição de ensino superior, os créditos eventualmente obtidos por meio do Fies não serão atingidos.

O entendimento foi definido em julgamento da Terceira Turma, em processo de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Ela destacou a função social dos créditos, caracterizando-se nessa situação a prevalência do interesse coletivo sobre o particular.

“Muito mais que constituir simples remuneração por serviços prestados, os créditos recebidos do Fies retribuem a oportunidade dada aos estudantes de menor renda de obter a formação de nível superior, de aumentar suas chances de inserção no mercado de trabalho formal e, por conseguinte, de melhorar a qualidade de vida da família”, concluiu a ministra.

(O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial)

CDC 

Um dos pontos que o STJ também discutiu foi a subordinação do Fies às regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Apesar de inicial divergência entre suas turmas, posteriormente, o entendimento do tribunal foi dar ao programa de financiamento estudantil o mesmo tratamento que se aplica aos juros do crédito educativo – os quais, por fazerem parte de uma relação específica, que não se confunde com a relação de consumo, não acompanham as restrições do mercado consumidor.

“Quanto à aplicabilidade do CDC aos contratos de crédito educativo, tenho mantido o entendimento de que o CDC não se aplica a tais contratos, por não se tratar de um serviço bancário, mas de um programa do governo, custeado inteiramente pela União”, destacou a ministra Eliana Calmon (já aposentada) no julgamento do REsp 1.031.694 pela Segunda Turma.

Fiador

Outra questão debatida pela Primeira Seção do STJ foi a legalidade da figura do fiador nos contratos do Fies. O entendimento consolidado pelo tribunal é de que é legal sua exigência como requisito para a celebração do contrato de financiamento estudantil, sendo lícita ainda a exigência de comprovação da sua idoneidade. A questão foi debatida no âmbito do julgamento de demanda repetitiva cadastrada como Tema 349.

Relator do recurso representativo da controvérsia (REsp 1.155.684), o ministro Benedito Gonçalves destacou que existe discricionariedade quanto à escolha do fiador como forma de garantia de pagamento do contrato, não cabendo ao Poder Judiciário interferir nesse aspecto.

Para o ministro, a exigência do fiador não contraria a natureza social do Fies, nem é fator que dificulta o ingresso do estudante no programa: “É de se reconhecer a legalidade da exigência de prestação de fiança, porquanto nela está embutida a legítima prerrogativa do credor de verificar as chances de receber de volta o valor que deu em empréstimo, que investiu, caso o contratante não cumpra os deveres assumidos no contrato”.

O entendimento já havia sido firmado no  Ag 1.108.160, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, o qual entendeu pela legalidade das exigências: “Se é legal a exigência de comprovação de idoneidade do fiador [ já reconhecida em julgados anteriores ], quanto mais legal será a própria exigência de apresentação de fiador pelo estudante para a concessão do crédito estudantil ofertado pelo Fies, de forma que não se pode reconhecer a legalidade de obrigação acessória sem o reconhecimento da legalidade da obrigação principal”.

Capitalização de juros

No mesmo REsp, a Primeira Seção discutiu ainda a possibilidade ou não de capitalização dos juros no financiamento estudantil. A controvérsia foi cadastrada como Tema 350.

O ministro Benedito Gonçalves ressaltou que a jurisprudência do STJ “mantém-se firme no sentido de que, em se tratando de crédito educativo, não se admite sejam os juros capitalizados, haja vista a ausência de autorização expressa por norma específica para tanto, incidindo, à espécie, o enunciado sumular 121 do Supremo Tribunal Federal”.

Dessa maneira, em caso de pagamento indevido dos valores referentes aos Fies, “apurado em liquidação, é perfeitamente viável a repetição simples ou a compensação desse montante em contratos de financiamento estudantil”, decidiu a seção, seguindo o voto do ministro.

Transferência

Outro caso que chegou ao crivo do STJ tratava da transferência de aluna beneficiária do Fies no decorrer do curso. A questão foi debatida em mandado de segurança no qual uma estudante buscava afastar ato do ministro da Educação que teria condicionado a sua mudança de faculdade à adesão da nova instituição ao Fundo Garantidor de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC), visto que o contrato firmado pelas partes previa que essa seria a forma de garantia contratual.

A estudante alegava inconstitucionalidade do regramento do MEC que estabelecia aquela condição para a transferência. Relator do processo, o ministro Mauro Campbell Marques não enxergou qualquer tipo de irregularidade no ato, entendimento que foi seguido pela maioria dos seus colegas da Primeira Seção.

“Ressalta-se, pela análise contratual, que a própria impetrante aceitou como garantia ao contrato tal fundo, não cabendo ao Poder Judiciário substituir tal garantia pelo fiador, como requer” – destacou o ministro no julgamento do MS 19.571.

Novo financiamento

No julgamento do MS 20.169, a Primeira Seção do STJ analisou a possibilidade de concessão de novo financiamento a estudante que já participou do programa, o que é vedado por norma editada pelo MEC.

O ministro Herman Benjamin destacou a limitação de ordem financeira a que o Fies se sujeita, presente tanto na lei que o regula, quanto na portaria que institui a vedação de concessão do benefício a pessoa que já o tenha recebido.

De acordo com o magistrado, “a restrição à obtenção de novo financiamento por aquele que já tenha sido beneficiado pelos Fies anteriormente é decorrência natural dos próprios limites orçamentários dos recursos destinados a essa política pública, além de configurar previsão razoável e alinhada aos ditames da justiça distributiva”.

Por esse aspecto, o ministro decidiu que a concessão de financiamento estudantil não é direito absoluto. “Como não existe verba suficiente para a concessão ilimitada de financiamento estudantil, seria injusto alguém ser beneficiado pelo programa, por mais de uma vez, enquanto outros não pudessem eventualmente ter oportunidade alguma no ensino superior privado”, afirmou.

Fies: batalhas judiciais no caminho do diploma universitário
Fonte: STJ